terça-feira, 26 de julho de 2011

BUDISMO E PSICANÁLISE

Florianópolis, 4 de julho de 2011.

Universidade Federal de Santa Catarina.
Departamento de Psicologia.
Escolas Psicológicas III - Psicanálise.

Prof.  Fernando Aguiar Brito de Sousa.

Oliveiros Dias Jr.

Budismo e Psicanálise


Introdução

    O budismo e a psicanálise, duas escolas, dois empreendimentos humanos. O primeiro com 2500 anos. O segundo com pouco mais de 100 anos. Tão distantes no tempo e no espaço, nascidos em contextos históricos e sociais tão diferentes, certamente possuem diferenças. Ainda assim, apresentam pontos de convergência bem interessantes. O sofrimento leva o homem a refletir sobre si mesmo e sobre a origem e o cessamento do sofrimento. Tanto o budismo como a psicanálise estudaram sistematicamente sobre esse tema.

Encontros entre budismo e psicanálise

    Bezerra (2011) aponta quatro pontos de encontro importantes entre o budismo e a psicanálise: a teoria parte da experiência, a ênfase na ação, o horizonte ético e a perspectiva ecológica.
    O budismo e a psicanálise partem da experiência para estudar a natureza e o funcionamento do eu. Buscam melhores alternativas para lidar com as dificuldades encontradas no dia a dia. Há um colorido fenomenológico porque o centro não é de natureza objetiva mas a descrição da experiência de si em relação com o mundo.
    A despeito da sofisticação e complexidade de suas teorias, budismo e psicanálise são saberes fundamentados na prática, são formas de intervenção na existência. O sofrimento impele o homem a transformar sua existência, torná-la mais interessante, procurando descrever e compreender a si, o mundo e sua vida.
    Budismo e psicanálise não separam a ética da epistemologia. A prática e a reflexão teórica apontam para a necessidade de mudança nos referenciais adotados para conceber e viver a vida. Conhecer-se para transformar-se, construir uma vida mais criativa e livre de condicionamentos. É semelhante ao que ocorre com a análise, quando auxilia o sujeito a se reorganizar psiquicamente, transformando o posicionamento deste frente às situações, aos seus desejos, ideais e às expectativas que incidem sobre ele.
    Incompatíveis tanto com descrições mentalistas, quanto com o reducionismo materialista, o budismo e a psicanálise compartilham de uma mesma perspectiva ecológica onde psique, cérebro e mundo são aspectos de uma mesma realidade, imbricados uns nos outros, interagindo e influenciando reciprocamente o tempo todo. Da ação do corpo no ambiente emerge a experiência subjetiva, que é inserida corporalmente, ancorada no mundo físico e simbólico, sustentando, assim, uma relação permanente de afetação recíproca.

A possibilidade de uma ipseidade destituída de uma identidade permanente

    A psicanálise é tida como uma prática voltada para a ampliação da capacidade normativa do sujeito (Bezerra, 2011). Na perspectiva de Osho (2000) ela está confinada à mente, mergulha fundo nesta, mas, seu objetivo não é muito elevado, sua meta é manter as pessoas normais, menos infelizes, menos miseráveis, não transforma a consciência do homem no sentido de  uma transcendência desta condição.
    Contemplação e desapego ao eu, realizar e vivenciar a verdadeira natureza do ser, um ser desperto, um buda (termo de origem no sânscrito que significa desperto), viver liberto de toda ignorância e sofrimento. Esta é a proposta da “psicologia” budista. Como disse um mestre do budismo zen do século XIII, Eihei Dogen, “estudar o budismo é estudar a si mesmo; estudar a si mesmo é esquecer-se de si mesmo”. Para o budismo, existe a possibilidade que o sujeito tenha uma ipseidade ainda que destituído de uma identidade permanente, sendo possível ao sujeito ser livre do esforço neurótico por manter a coerência com uma identidade imaginária, podendo agir de maneira mais livre no mundo (Sanches e Safra). Aqui está um ponto importante que diferencia o budismo e a psicanálise, faz-se necessária uma análise mais profunda sobre o sofrimento e o “eu” que sofre.

O eu e o sofrimento

    De acordo com Christensen (1999), baseado na teoria psicanalítica de Freud, lidamos com três fontes de sofrimento e algumas alternativas paliativas para lidar com ele. São as fontes de sofrimento: o corpo (doenças, envelhecimento etc.); o mundo externo (com suas forças destrutivas); e finalmente, as nossas relações com os outros homens. Para lidar com isso, relativizamos a situação, procuramos por satisfações substitutivas ou nos fazemos insensíveis abusando de substâncias intoxicantes. Freud (1926 apud Christensen, 1999) indicou algumas fontes principais de sofrimento: perda do objeto; perda do amor e perda física. Este ainda sugere que a ansiedade e a depressão são reações às perdas dolorosas, que levam o indivíduo a procurar prazer e evitar o desprazer. É importante lembrar que Freud (1978 [1910]) já afirmava que os indivíduos adoecem, procurando uma satisfação substitutiva por não conseguir a satisfação primária das suas necessidades eróticas na realidade. Com elevadas aspirações e sob pressão dos recalques, a realidade torna-se insatisfatória e o indivíduo refugia-se na fantasia. Este indivíduo compensa sua insatisfação engendrando realizações de desejos. É bem interessante frisar que para o budismo, o eu está sempre insatisfeito, movido pelo desejo, apoiando-se numa ficção de um eu permanente e independente, o que em si é uma fantasia, uma ilusão (aqui se aplica o termo maya em sânscrito), fonte de sofrimento.
    Bezerra (2011) afirma que para Freud o eu é uma ficção necessária à ação e a experiência de si é uma resultante complexa, inacabada e mutante de um equilíbrio instável em um conjunto amplo de fatores - as exigências conflitantes entre “isso”, “eu” e “supereu” perante os desejos inconscientes, normas sociais internalizadas, mecanismos de defesa e outras demandas. Assim, esse eu é fragmentado, direcionado por forças que não domina, uma estrutura mais ou menos bem sucedida que leva o sujeito a lidar com o desamparo, a angústia e o desejo, a buscar satisfação, enfim, a agir no mundo. O eu também é descrito como uma imagem do reflexo no olhar do outro, daquilo que é suposto poder causar ao outro, configurado por uma trajetória de identificações, posicionamentos subjetivos frente aos outros, configurações somáticas e uma resultante de interações que permitem ao sujeito projetar-se para o futuro. Neste ponto cabe frisar que para o budismo o tempo também é ilusório.

A psicologia budista

    Vários autores ocidentais apontam convergências e divergências entre o budismo e a psicanálise, os mais conhecidos internacionalmente são Erich Fromm e Mark Epistein e, nacionalmente, Benilton Bezerra Jr. No entanto, devido às influências sócio-históricas dos autores ocidentais e as dificuldades na tradução de obras budistas originais, para adentrar na “psicologia” budista, foi escolhido para este trabalho a obra de Ryotan Tokuda (1997) um monge budista zen, graduado (1963) em filosofia budista pela Universidade de Komazawa, Japão e que residiu no Brasil por mais de quarenta anos, dominando os conceitos budistas em vários idiomas: sâncrito, páli, japonês e português.
    De acordo com Tokuda (1997) não existe uma psicologia budista propriamente dita, existe o yuishiki (em japonês) ou vijna matravada (em sânscrito). O yuishiki é estudado através da prática da meditação, é diretamente ligado à ela. Nesta perspectiva o mundo é consciência. Mesmo que não tenha dogmas, o budismo baseia-se em algumas teorias. Aqui vamos nos referir a três teorias: a teoria das características da existência;  as quatro nobres verdades e a teoria dos doze nidanas.
    São quatro as características (ou marcas) da existência: anikka, dukkha, anatman e nirvana. Anikka significa impermanência, ou seja, tudo se transforma constantemente. Assim, todo e qualquer apego gera sofrimento. Dukkha é este sofrimento proveniente do apego, da insatisfação. Daí chega-se à terceira característica, anatman, a não existência de um eu, uma identidade permanente, portanto, a impossibilidade de se dizer meu ou minha. A quarta característica é o nirvana, um estado de extinção da dor, uma paz profunda que o mundo não pode dar nem tirar, quando se chega ao estado de não-eu, não há nada para segurar, para pedir ou fugir.
    Considerada o primeiro sermão do Buda Sakiamuni, realizado logo após seu despertar (por isso buda, que significa desperto), “As Quatro Nobres Verdades”: (1) toda existência é dor (dukkha); (2) toda dor provém do apego, da ignorância; (3) existe uma maneira de  se eliminar o sofrimento e (4) essa maneira é a prática do Caminho (o caminho óctuplo, um conjunto de práticas e ensinamentos budistas). Os sofrimentos primários (principais) são nascer, envelhecer, adoecer e morrer, pois, encaradas sem sabedoria, todas as fases da existência humana são sofrimento. Os sofrimentos secundários: não alcançar aquilo que se deseja e não conseguir ficar longe daquilo que se odeia; a separação daqueles a quem amamos; o encontro com aqueles a quem odiamos.A satisfação dos desejos vem através dos sentidos que nos conectam ao mundo impermanente ao nosso redor. Se gostamos de algo, acabamos por desejá-lo e nem sempre conseguimos e, quando conseguimos, vem a impermanência e leva tudo embora. Sofremos porque desejamos. Desejamos porque sentimos a falta. O sentimento de falta vem da ignorância. O nirvana, a plenitude, o não sofrimento é alcançado pela extinção da ignorância praticando-se o caminho óctuplo, que, resumidamente se entende por:: compreensão correta, pensamento correto, palavra correta, ação correta, vida correta, esforço correto, atenção correta e concentração correta.
    A teoria dos doze nidanas (ou da originação interdependente) é bem complexa para ser tratada aqui, mas, resumidamente, parte de uma seqüência de questões: por que existe o nascimento, envelhecimento e a morte? Por que tudo isso é sofrimento? Por que existimos? O que existe? Por que temos todos os sentidos e a consciência? Por que possuímos uma mente? E assim por diante até que no último elo, onde a teoria responde que tudo é ignorância, ignorância sobre as coisas e sobre nós mesmos. Ignorantes, não vivemos a realidade, as coisas como elas são, o mundo como ele é. Pratica-se o caminho para extinguir a ignorância e atingir a sabedoria, eliminando o sofrimento e alcançando a paz e a felicidade.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

Bezzerra Jr., Benilton. Inconsciente e impermanência. Mente e cérebro. São Paulo: Duetto. Disponível em: <http://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/inconsciente_e_impermanencia.html>

Christensen, Laurence W. (1999). Suffering and the dialectical self in buddhism and relational psychoanalysis. The American Journal of Psychoanalysis, Vol. 59, No. 1, 1999. Disponível em <http://www.springerlink.com/content/l01517605hnx3738/fulltext.pdf>

Freud, S. (1910). Cinco lições de psicanálise. In: Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

Osho. (2007). Autobiografia de um místico espiritualmente incorreto. São Paulo: Cultrix, 10 ed.

Sanches, Pedro R. P. ; Safra, Gilberto. Diálogo entre psicanálise freudiana e zen-budismo a respeito do eu, da subjetividade, e da identidade. Instituto de Psicologia - Universidade de São Paulo. 14o. Simpósio Internacional de Iniciação Científica. Disponível em: <http://www.usp.br/siicusp/Resumos/14Siicusp/2616.pdf >

Tokuda, Ryotan. (1997). Psicoloogia budista. Rio de Janeiro: R. Tokuda.

TEXTOS COMPLEMENTARES :

Barros, Maria T. da Costa. (2002).  O despertar do budismo no ocidente no século XXI - contribuição ao debate. Tese apresentada ao Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro para a obtenção do título de Doutor em Saúde Coletiva. Disponível em < http://www.pepas.org/teses/despertar_budismo.pdf>

Cooper, Paul C. (2001). The gap between being and knowing in zen buddhism and psychoanalysis. The American Journal of Psychoanalysis, Vol. 61, No. 4, December 2001. Disponível em < http://www.springerlink.com/content/x4228134055g7227/fulltext.pdf >

Epstein, M. (1995). Thoughts without a thinker: buddhism and psychoanalysis. Psychoanal. Rev., 82:391-406. Disponível em: <http://www.pep-web.org/document.php?id=psar.082.0391a >

Esclapes, Alexandre. O conceito de impermanência no Budismo e na psicanálise. Disponível em: <http://www.monjacoen.com.br/textos-budistas/textos-diversos/309-o-conceito-de-impermanencia-no-budismo-e-na-psicanalise>

Fromm, Erich. (1960). Zen budismo e psicanálise. São Paulo: Cultrix. Disponível em: <http: //pt.scribd.com/doc/32020137/Psicologia-DT-Suzuki-E-Fromm-Zen-Budismo-e-Psicanalise>

Nichol, David. (2006). Buddhism and psychoanalysis. The American Journal of Psychoanalysis, Vol. 66, No. 2, June 2006 ( 2006). Disponível em <http://www.springerlink.com/content/p242343530368030/fulltext.pdf>

Rubin, Jeffrey B. (1999). Close encounters of a new kind: toward an integration of psychoanalysis and buddhism. The American Journal of Psychoanalysis, Vol. 59, No. 1, 1999. Disponível em: < http://www.springerlink.com/content/p0765673g1181x86/fulltext.pdf >

Terêncio, Marlos G. Um percurso psicanalítico pela mística, de freud a lacan. Tese de mestrado em psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Disponível em: <http://www.tede.ufsc.br/teses/PPSI0289-D.pdf>
   

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