quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

“Quase Morto de Sede”



Certa vez perguntaram a Shibli, um mestre sufi:

P: Mestre, como você iniciou o seu caminho? Quem lhe indicou o caminho pela primeira vez?
R: Meu primeiro mestre foi um cão.
P: Como?
R: Estava observando um cão sedento à beira de um lago. Quando ele se aproximava da água, via sua própria imagem, rosnava e recuava. Assim ele ficou por muito tempo até que a sede era tanta que se jogou pra dentro do lago, a imagem desapareceu e o cão teve toda a água que precisava. Naquele mesmo instante percebi que a barreira entre mim e o que mais buscava era eu mesmo.

Esta pequena estória pode servir de fundo para o que podemos denominar fluxo de figura e fundo  e outros conceitos  da Gestalt.
O que pode impedir a pessoa de ver o óbvio, e, o que é o óbvio afinal? A isso a Gestalt chama de ZIN - zona intermediária (entre o indivíduo e o mundo) - impede o indivíduo de ver o mundo como ele é, impedindo-o de ver o óbvio. Um terapeuta vai trabalhar na ZIN, ela não deixa de existir mas, não pode intermediar tudo, toda relação. O que será que impede as pessoas de vivenciar o assim chamado “sagrado” do mundo, essa vivência do enlevo de estar vivo, a alegria nas pequenas coisas da vida?
Shibli fala de uma necessidade, de uma busca. Na Gestalt, a necessidade é algo em aberto que procura um fechamento, emerge na erlação organismo / meio, emerge no “campo”.
O que estava acontecendo naquele lago serviu de “fundo” para Shibli, delineando uma “figura” bem delineada, que foi o insight naquele momento. A figura destacou-se de forma clara do fundo, apresentando nitidez. Shibli teve tempo para conhecer os detalhes da figura e teve acesso ao fundo compatível.  Nitidez, tempo e acesso, as três condições necessárias para uma figura ser bem delineada. Se alguma dessas condições não estivessem presentes, a figura seria mal delineada ou ainda, cristalizada, e Shibli provavelmente veria um cão, somente um cão na beira de uma lagoa e nada mais. Várias pessoas poderiam presenciar a mesma cena citada na estória mas, certamente veriam ou experienciariam coisas diferentes, até mesmo bem discrepantes.
Para Shibli houve uma aprendizagem, uma reestruturação do “campo”. Não foi algo como um treinamento ou adestramento, mas fruto de um “estar atento”, plenamente atento, ou ainda, eu diria, um estado de “awareness” tão poderoso e transformador a ponto de mudar sua visão de mundo. Em várias tradições religiosas sempre houveram pessoas que ultrapassaram seus limites perceptuais a ponto de realmente verem o óbvio e não o fabricado em sociedade, intermediado pela ZIN, dando um salto de consciência.
Visto tudo isso, um convite a ler a estória novamente e perceber se houve alguma mudança :

Certa vez perguntaram a Shibli, um mestre sufi:

P: Mestre, como você iniciou o seu caminho? Quem lhe indicou o caminho pela primeira vez?
R: Meu primeiro mestre foi um cão.
P: Como?
R: Estava observando um cão sedento à beira de um lago. Quando ele se aproximava da água, via sua própria imagem, rosnava e recuava. Assim ele ficou por muito tempo até que a sede era tanta que se jogou pra dentro do lago, a imagem desapareceu e o cão teve toda a água que precisava. Naquele mesmo instante percebi que a barreira entre mim e o que mais buscava era eu mesmo.

Duvido que o leitor, neste momento leia de forma idêntica à primeira vez logo acima.

    Um grande prazer.

    Abraço,

    Oliveiros.

Nenhum comentário:

Postar um comentário