terça-feira, 19 de outubro de 2010

Educação Libertária

Educação Libertária:
da Segurança ao Risco
“Psicologicamente, a educação libertária, ao invés de optar pela segurança do
ajustamento da personalidade dos indivíduos ao molde social, opta pelo risco
de desenvolver o não-desenvolvimento, a possibilidade do novo, do diferente,
do criativo.”
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Sílvio Gallo


O filósofo anarquista britânico Herbert Read afirmava que, quanto ao objetivo da educação, podemos falar em apenas duas hipóteses, e que são mutuamente excludentes: a primeira afirma que a educação dever ser um processo através do qual o indivíduo chega a ser aquilo que é; a segunda, ao contrário, postula que o processo educacional deve ser organizado de forma a que o indivíduo chegue a ser aquilo que não é. Em outras palavras, ou o sistema Educacional é articulado de forma a respeitar as particularidades de cada indivíduo, contribuindo para seu afloramento e desenvolvimento, o que poderíamos chamar de uma educação autônoma ou, por outro lado, é organizado para introjetar no indivíduo as características que a sociedade deseja, constituindo-se, assim, numa educação heterônoma. Tal classificação é eminentemente política: ou falamos de uma escola caracterizada como aparelho ideológico, destinada a difundir as idéias dominantes e a preparar os indivíduos para viver numa sociedade de exploração, tornando-se eles mesmos engrenagens dessa máquina social, perpetuando-a, ou falamos de uma escola que se dedique a formar indivíduos comprometidos consigo mesmos e com a coletividade, mas não com essa estrutura social que aí está. Num caso, a escola está a serviço da manutenção da sociedade, o que significa construir indivíduos que reproduzam essa sociedade; noutro, a equação inverte-se: trata-se de preparar indivíduos capazes de operar uma transformação nessa sociedade. Em ambos os casos a questão é a de formação de um indivíduo livre; para reproduzir a sociedade ele não pode ser livre ou, seguindo o dístico básico do liberalismo, pode ser livre apenas até o limite da liberdade do outro, o que equivale a liberdade nenhuma; já para agir no sentido da transformação da sociedade só a liberdade pode ser o fundamento de seus atos.

Num livro pequeno, mas denso e envolvente – Utopia e Paixão --, Roberto Freire e Fausto Brito falam da questão político-pedagógica da liberdade numa perspectiva por demais interessante: mostram como a busca de segurança pelas pessoas é a principal responsável pela instauração do poder e do autoritarismo. Quando somos escravos, escrevem eles, estamos absolutamente seguros, nossa sobrevivência está garantida, desde que não infrinjamos as leis que regulam a escravidão; do mesmo modo, quando delegamos nosso poder, autoridade e liberdade através do voto num sistema democrático representativo ganhamos, em troca, a sensação de segurança: os destinos da sociedade já não estão em nossas mãos.

Jean-Paul Sartre, filósofo existencialista francês, já falava, na década de quarenta, da angústia que significa para o homem descobrir-se como um ser livre. Se todos os atos humanos são baseados na escolha, dela advém a responsabilidade sobre esses atos e suas conseqüências. Fugir à liberdade, isto é, não precisar escolher e ter alguém que se responsabilize por nossa vida, por nosso sucesso ou por nosso fracasso nos tranqüiliza, nos dá a sensação de segurança. Optar por assumir a liberdade, por outro lado, encarando a angústia de frente e não fugindo das responsabilidades, é jogar para o alto qualquer possibilidade de segurança; significa assumir a aventura, o risco, pois tudo pode acontecer. Por isso, Freire e Brito afirmam que “risco é sinônimo de liberdade”. Não estamos de forma alguma seguros, mas nosso caminho é traçado por nós e somos os únicos responsáveis por ele. Neste sentido, a pedagogia tradicional trabalha pelo sistema capitalista que, segundo as análises de Herbert Read, prepara o indivíduo para reproduzir os padrões sociais e não dar vazão à criatividade e à singularidade, poderia ser identificada como uma pedagogia da segurança. Esta educação tradicional garante a segurança em dois níveis: individualmente, garante a segurança de cada um, através da adaptação da pessoa às instituições, da padronização das reações, criando personalidades sob medida, que não precisam e nem podem ousar, fazendo com que estas pessoas sintam-se seguras, por viver em um mundo sem mistérios e onde as ações e reações podem ser prontamente previstas; a nível social, garante a segurança da estrutura do sistema a que serve, pois cada um dos indivíduos reproduz, em seus atos mínimos, as relações que fundamentam este sistema e, sentindo medo das novidades, estes indivíduos nunca teriam chances de levar a cabo um processo de transformação social. Por outro lado, a pedagogia libertária proposta pelos anarquistas que, através daquela mesma análise de Read, podemos definir como tendo por objetivo despertar em cada indivíduo a criatividade e permitir o desenvolvimento livre e autônomo de todas as suas potencialidades, sendo a fonte da singularidade, poderia ser identificada como uma pedagogia do risco. Pedagogia do risco, pois ao mesmo tempo em que se preocupa em criar condições estruturais para que cada um dos indivíduos desenvolva sua singularidade, procura também trabalhar o processo de modo que dele brote a liberdade, como uma construção coletiva do grupo de indivíduos.

Enquanto pedagogia do risco, a educação anarquista também age em dois níveis, o individual e o coletivo, mas em um sentido oposto àquele da educação tradicional. A pedagogia libertária age no nível individual através da liberação do indivíduo para o prazer e para a criatividade, para o livre desenvolvimento de tudo aquilo que ele pode ser; a nível coletivo, faz com que esse mesmo indivíduo que se desenvolve livremente perceba-se sempre como parte de um todo social mais amplo e que, mesmo podendo desenvolver livremente suas características, elas podem e devem harmonizar-se com as mais díspares características de todos os demais indivíduos que compõem a multiplicidade social. Psicologicamente, a educação libertária, ao invés de optar pela segurança do ajustamento da personalidade dos indivíduos ao molde social, opta pelo risco de desenvolver o não-ajustamento, a possibilidade do novo, do diferente, do criativo. Esta prática psicológica tem uma conseqüência política: ao praticar a segurança do ajustamento, opta-se por uma realidade de manutenção e perpetuação da realidade social; já com a postura do risco do desajustamento, a opção é claramente por um processo de transformação de uma sociedade opressora e pela construção de uma sociedade libertária. Este é o sentido da educação anarquista no seio da sociedade capitalista, a criação de indivíduos críticos, conscientes e criativos, abertos para a amplitude social e, mais do que isso, em perfeita relação com ela. Assim, a educação anarquista na sociedade capitalista tem a função de criar o novo, o diferente, quebrar as estruturas de reprodução da sociedade e, com isso, criar pólos de resistência e focos de desenvolvimento de uma revolução social. Com o advento de uma sociedade libertária, a pedagogia do risco seguiria desempenhando seu papel de criadora do novo, revitalizando a dinâmica social. Uma sociedade libertária não poderia ser outra coisa senão uma “revolução permanente”, onde a liberdade fosse construída e conquistada a cada momento, onde as multiplicidades sociais estivessem constantemente recriando um equilíbrio dinâmico. Lembremos que Proudhon já afirmava que nenhuma revolução pode ter êxito se não estiver substancialmente amparada em uma educação totalmente renovada; na dinâmica de uma sociedade libertária, a pedagogia do risco deve estar constantemente lançando-se e lançando os indivíduos ao risco e à vida.

Deixando de lado as discussões pedagógicas de fundo, devemos afirmar, porém, que nenhuma educação pode ser completamente autônoma. O Emílio, que Rousseau pretendia educar de forma totalmente alheia à sociedade corrupta, para que as nefastas influências dela não interferissem na formação de sua personalidade, é uma utopia irrealizável. A formação de qualquer ser humano deve, necessariamente, levar em conta os elementos internos e externos. Deste modo, uma educação autônoma só seria possível se, paradoxalmente, fizesse uso da própria heteronomia. Em outras palavras, o indivíduo precisa aprender a ser autônomo, e isso não acontece da noite para o dia. A tarefa de uma educação anarquista enquanto uma pedagogia do risco é, então, a de efetuar, em primeiro lugar, uma desconstrução da ideologia de segurança e autoridade que a sociedade capitalista introjeta em cada indivíduo desde o nascimento, através da família, da escola, dos meios de comunicação e das demais instituições sociais. Esta ideologia é que sustenta os sistemas políticos do capitalismo, sejam aqueles mais autoritários e totalitários, sejam aqueles mais liberais, em que os indivíduos compram a segurança cotidiana através da moeda corrente do voto democrático. Não podemos reproduzir a ingenuidade de Rousseau, pensando que seria possível isolar as crianças da sociedade numa escola anarquista que se pareceria com uma “ilha de liberdade”; o naufrágio seria rápido e implacável: a força das demais instituições rapidamente levaria tais indivíduos para o reino dos liberalismos
sem escrúpulos.

Ainda no século passado, Bakunin já argumentava – em Deus e o Estado – que uma escola fundada nos princípios anarquistas não deveria agir tomando a liberdade como meio, mas sim como fim; isso significa que a pedagogia libertária deve partir da autoridade para desconstruí-la progressivamente, enquanto as crianças conquistam e constroem coletivamente a liberdade. Tomar a liberdade como meio da educação é reproduzir um liberalismo rousseuniano que aponta para o individualismo de uma sociedade com um tênue verniz democrático. Toma-la como fim, por outro lado, significa construir um sólido alicerce para a conquista de fato da liberdade, podendo contribuir para uma efetiva transformação dessa sociedade de exploração. Significa, também, partir da vivência da segurança, já introjetada pelo indivíduo, para transcende-la aos poucos, assumindo paulatinamente o risco que é a vivência da liberdade no sentido sartreano. Viver é arriscar. A vida é uma busca incessante, sem que nem ao mesmo saibamos o que estamos procurando; até que, num momento que parece mágico, descobrimos que o único sentido da busca reside nela mesma: na eterna procura através da qual construímos o nosso caminho. Ao educar para a liberdade, a pedagogia anarquista opta por enfrentar o risco, por lançar-se a ele, por vivê-lo com toda a intensidade. Ao faze-lo, a pedagogia libertária escolhe a vida; a pedagogia tradicional, ao contrário, ao perseguir a segurança de um metódico caminhar em círculos, escolhe a morte.

(Sílvio Gallo é professor da Unicamp e da Unimep)

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