segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Escrevendo Sobre a Água


Oliveiros Dias Jr.


Escrevendo Sobre a Água

           Esta é uma tentativa de escrever sobre algo que, por si, é sempre fugidio apesar de estar sempre presente.

           Em algum momento acontece aquele “Ah! É isso!” ou ainda “Nossa! Estava na minha frente o tempo todo!”. De Brentano a Merleau-Ponty, um longo caminho, aliás, caminhos próprios de Brentano, Husserl, Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty, Marcos Müller, Oliveiros e tantos outros. Apesar da tentativa de caminhar pelos seus passos, os caminhos são diferentes, os sinais, a leitura, compreensão, insights, projeções e ligações, caminhos, caminhantes, movimentos totalmente distintos e, ao mesmo tempo tão semelhantes.

           Em Brentano, a imaginação, sensibilidade e fenômenos físicos formam um todo espontâneo, uma Gestalt. Um fenômeno psíquico é um todo, que não tem autor, não tem sujeito. Um todo espontâneo, sem autor (indeterminado), entre o mental e o somático. À capacidade de um fenômeno psíquico se impor à vontade, dando orientação às intenções, Brentano chamou de intencionalidade.

           Edmund Husserl, inspirado em Brentano, começa a questionar o que é um número e chega à conclusão que um número surge como um fenômeno psíquico. Agora começa a questionar se as pessoas são iguais, o que é público ou privado, chegando à conclusão que o conhecimento, as gestalten são públicas e critica os subjetivismos e o psicologismo de Brentano. Apresenta duas teses: a intersubjetividade dos atos de consciência e a publicidade das gestalten (ou fenômenos psíquicos que ele chama de essências). Para ele, o passado e o futuro dão forma ao presente. As essências não determinam, as essências se doam. Os atos são individuais, atuais e não são públicos, visam as essências que são públicas – o que visamos é público. A fenomenologia vai se ocupar da vida onde passamos a maior parte vivendo mais uma ficção que a realidade. Assim, pode-se dizer que a loucura não é patologia, mas um modo de lidar com a ficção. Aqui também deve-se colocar uma diferença entre Brentano e Husserl, para o primeiro, as essências são particulares e para o último, públicas. A partir de 1907, Husserl afirma que não existe o ser, somente o fenômeno. Querendo explicar a origem das essências, abandona o ponto de vista estático e adota um dinâmico, assim surgem os conceitos de fundo e horizonte, passado e futuro (vividos e cronológicos) formando uma “linha” de atos de consciência. Agora, as essências são formas de outros atos, daquilo que morreu. Os afetos surgem com as essências tocando a consciência. Para Husserl, temos que parar de pensar no mundo como um conjunto de coisas separadas. As consciências de ato dividem entre si uma crença que não é objeto, mas um princípio, chamado ego puro ou transcendental, ou seja, este é uma implicação coletiva.

           Escrevendo com o dedo sobre a água. Ela me convida a escrever, algumas impressões do momento e alguns escritos de um passado distante e tão presente:
“O Insondável (Tao) que se pode sondar não é o verdadeiro Insondável.
O Inconcebível que se pode conceber não indica o Inconcebível.
No Inominável está a origem do Universo.
O que é Nominável constitue a mãe de todos os seres.
O Ser indigita a Fonte Incognoscível.
O Existir nos leva pelos canais cognoscíveis.
Ser e Existir são a realidade total.
A diferença entre Ser e Existir é apenas de nomes.
Misterioso é o fundo da sua unidade.
Eis em que consiste a sabedoria suprema.” (LAO TZU, apud Rhoden, 1989, p.23)

           A autoria do texto anterior é legada a Lao Tzu, que teria vivido na China no século VI a.C. Veio a ser muito conhecido através de Chuang Tzu, que, para alguns seria um aluno e para outros o “verdadeiro” Lao Tzu. Outro escrito que faz pensar a respeito do mundo percebido e do não percebido e o que está além das concepções:
O Tao:
Galos cantam, cachorros latem, isso todos sabem. Mesmo os mais sábios não distinguem de onde vêm essas vozes nem explicam por que os cachorros latem e os galos cantam quando o fazem. Além do menor dos menores não há medida. Além do maior dos maiores também não.
Onde não há medida não há a < coisa >. Neste vazio você fala de < causa > ou de < chance > ? Você fala de < coisas > onde há < não-coisas >. Dar nome a um nome é delimitar uma < coisa >. Quando olho além do princípio não encontro medida. Quando olho além do fim, também não. Onde não existe a medida não há nenhum princípio de nenhuma < coisa >. Você fala de < causa> ou de <chance> ? Você fala de princípio de alguma <coisa>. O Tao existe? Então é uma <coisa que existe>. Poderá ele <não-existir> ? Há então a <coisa que existe> que <não pode não existir>?
Nomear o Tao é nomear a não-coisa. O Tao não é o nome de <um existente>. <Causa> e <chance> nada significam para o Tao. O Tao é um nome que indica sem definir.
O Tao está além das palavras e além das coisas. Não se exprime nem por palavras, nem pelo silêncio. Onde não existe nem mais as palavras, nem o silêncio, o Tao é apreendido.” (CHUANG TZU apud MERTON, Thomas, 1994, p.191 -193)

           Taïsen Deshimaru Roshi, comentando o Shodoka diz:

A ação misteriosa dos seis órgãos (roppan) é Ku e ao mesmo tempo é não é Ku. O halo luminoso de uma pérola pertence ao mundo dos fenômenos e ao mesmo tempo não lhe pertence. [...] Os olhos não podem entender, o nariz enxergar ou as orelhas tocar. Essa é a ação maravilhosa e misteriosa dos seis órgãos. Mais profundamente, isso significa que cada um é diferente, cada dia é diferente. Aqui e agora tudo se transforma, os fenômenos mudam sem cessar. Cada instante é diferente, a manhã, a tarde, antes, depois... Isso é Ku ou não? Tudo o que é apreendido pelos nossos sentidos ao mesmo tempo é Ku e não-Ku. Às vezes, durante o zazen, temos o satori e compreendemos que todas as existências são Ku. [...] Uma pérola tanto é um fenômeno como não-fenômeno. [...] tem o mesmo sentido do Hannya Shingyo (sutra, escrito, ensinamento budista), que diz: shiki soku ze ku, ku soku ze shiki ( o fenômeno não é diferente do vazio, o vazio não é diferente do fenômeno).” (YOKA DAISHI apud DESHIMARU ROSHI, 1995, p.64-65)

           Wu Jyh Cherng, ainda coloca sobre o Tao:
O Tao poderia ser entendido como Absoluto e como o próprio caminho e o caminhante. União de todas as coisas, não pode ser dividido.” (CHERNG, 2000, p. 31).
Tao significa literalmente, caminho, mas também caminhada ou caminhante, aquele que está caminhando, o caminho e o ato de caminhar. É também aquele que não está caminhando, o que não foi caminhado e a ausência do caminhar. O Tao é o absoluto.” (CHERNG, 1989, p.12)
O Tao do céu anterior não possui forma nem linguagem e está além das imagens, por isso abrange e inclui todas as imagens. É como o silêncio que abrange todos os sons e todos os tons, é como a ausência de cor que permite o surgimento de todas as cores, de todos os matizes. Esse “vazio” é o Tao do céu anterior. A parte manifestada do Tao é exatamente onde estamos. Nós somos o Tao em estado manifestado e convivemos (e possuímos) o Tao em estado latente. Como a nossa consciência, o nosso corpo e a nossa energia estão acostumados apenas com a vivência da forma, da imagem e da linguagem, normalmente nós não conseguimos sentir e experimentar o estado latente do Tao. Simplesmente como uma pessoa não poderia descrever o gosto daquilo que não tem um sabor ou descrever o formato daquilo que não possui forma.” (CHERNG, 1989, p.34-35)

           Voltando para Husserl, a fenomenologia é um estado das dinâmicas, onde o objeto de estudo é transcendente, não pertencente à realidade. “Nós vivemos desse jeito, não que o mundo seja assim”.

           Heidegger, questiona Husserl. Para ele, toda ação é intencional, porque visa essências que um dia existiram ou presumivelmente podem existir, pressupõe uma pré-compreensão do existir e, descrever o existir pré-compreendido é uma ontologia fundamental. Para Heidegger, a existência precede a essência. O que (quem) no sujeito pré-concebe a realidade, esse é o Da Sein (o ser aí). Quem faz a pergunta ontológica é o Ente. Com a substituição da redução fenomenológica para a circularidade hermenêutica, Da Sein é o que pergunta pela existência, o SER do SER AÍ. Isso fazer analítica existencial. Aqui vale colocar que a loucura e a neurose tem a ver com a interrupção do fluxo temporal, ou seja, não é comportada pela teoria Heideggeriana e Existencialista. A analítica existencial é uma análise do Ser Aí. Para este, só se encontra sentido na sua finitude. O ser do ser aí sempre me leva à finitude e, a finitude me leva ao tempo, que é o sentido do ser do ser aí. O que para Husserl é intencional, para Heidegger é existencial, por isso, intencionalidade operativa. E afinal, o que é o tempo? Ao perguntar pelo tempo, Heidegger percebe que não pode continuar a sua investigação porque transformaria o tempo num ente, isso seria um fracasso para a analítica heideggeriana, seria uma metafísica.

           Recordando, para Husserl não existe um ser, existem as essências. Para Heidegger, se existe vida, existe ser, ou seja, existe uma ontologia, uma verdadeira fenomenologia é ontológica. Em Sartre, por trás do fenômeno do ser há um ser em si, que não é alcançável. Brentano fala da totalidade espontânea (gestalt), relaciona fenômeno psicológico e intencionalidade. Husserl relaciona essência e intencionalidade. Heidegger trata do existencial (na decaída, finito) com a circularidade hermenêutica (diferenciação ontológica). Sartre fala em fenômeno do ser e intencionalidade. Seguindo o mesmo raciocínio, somando a teoria de Freud sobre a pulsão, agora pode-se falar de Merleau-Ponty com sua percepção ambígua e expressividade; de Paul Goodman com o excitamento impessoal e o awareness.

           Há alguns pontos interessantes a respeito da consciência, que para William James, é uma interrupção de um fluxo e, para Sartre, consciência é diferente do cogito (Descartes).

          Para Sartre, a emoção é uma expressão sem a utilização de utensílios, que tem uma origem no mundo sem ser através de um utensílio. O Eu é um objeto da consciência, diferenciando-se portanto, desta. 

          Husserl e Sartre discordam sobre o eu. Para Sartre o Eu empírico é transcendente à consciência (de atos, presente), um objeto criado, passado. Para Husserl, para Eu ter consciência que su sou uma consciência, há um Eu Transcendente. Aqui está o motivo pelo qual Sartre discorda, pois para ele o Eu empírico está no mundo (daí o Existencialismo).

          Em Sartre gosto de algumas afirmações onde “o nada é o que permite que eu veja os limites do ente. Me permite ver a diferença dos objetos. O negativo não é somente a negação. O nada tem uma função ontológica. Imaginar o mundo é introduzir o nada no mundo, é tomar o mundo como objeto (Sartre - O ser e nada).

          Agora sim, Merleau-Ponty, dando direito de cidadania à ambigüidade. Para ele, somos individuais e, ao mesmo tempo, gregários. A nossa individualidade é cheia de outros. O fundo não é somente uma figura, o fundo fornece os traços para a figura. Eu vejo uma figura para o fundo. O reforço é uma gestalt. O fundo é o tempo. Sou deformado e eu deformo o mundo da natureza.

          Agora volto àquela água, cheia de ondas, impressões e aquela vontade de escrever novamente sobre ela, escutando Merleau-Ponty, lembro de Heráclito (500 a.C.):
No mesmo rio nós pisamos e não pisamos. Não se pode pisar duas vezes no mesmo rio. Tudo flui e nada permanece. Tudo cede e nada se fixa. As coisas frias tornam-se quentes e as quentes, frias. O úmido seca, o ressecado umedece. É pela doença que a saúde dá prazer, pelo mal que o bem apraz, pela fome, a saciedade; pela exaustão, o repouso. É a mesma e uma só coisa estar vivo ou morto, desperto ou adormecido, jovem ou velho. Em cada caso, o primeiro aspecto torna-se o último, e o último, novamente o primeiro, por uma súbita e inesperada reversão. Eles se separam e depois se unem novamente. Tudo vem na estação certa.” (HERÁCLITO apud OSHO, 2000, p.237).


Gosto de uma frase de Marcos Müller: “A grandeza de um filósofo se mede pelo impensado, ou seja, pelas incompreensões, questionamentos causados por ele”. Tenho mantido este pensamento nesta disciplina, no meu caminhar, no meu escrever.

Sobre a água da vida, um caminho sem origem ou destino, um eterno agora enquanto meu dedo percorre a água, escrevendo para desaparecer logo em seguida, que maravilha!

Só posso agradecer por estar vivo ao encontrar a morte a cada momento. Cada pessoa, caminho, caminhante, caminhar, cada momento, diferente, único.


REFERÊNCIAS:

CHERNG, Wu Jyh. Iniciação ao taoísmo. Rio de Janeiro: Mauad, 2000.
CHERNG, Wu Jyh. Tai chi chuan: a alquimia do movimento. Rio de Janeiro: Objetiva, 1989.
DAISHI, Yoka. Shodoka: o canto do satori imediato. Tradutor: Mestre Taïsen Deshimaru Roshi. São Paulo: Pensamento, 1995, ed.10.
DIAS JR, Oliveiros. Notas de aula do Prof. Marcos Müller-Granzoto durante o primeiro semestre de 2010, durante a disciplina de Fenomenologia e Existencialismo do curso de Psicologia da UFSC.
MERTON, Thomas. A via de Chuang Tzu. Petrópolis: Vozes, 1994, ed.7.
OSHO. A harmonia oculta: discursos sobre os fragmentos de Heráclito. São Paulo: Cultrix, 2000, 10 ed.
ROHDEN, Huberto. Tao Te King – Lao Tse. São Paulo: Martin Claret, 1989, ed. 8.


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